Projetado como carro-chefe da política de inclusão do Ministério da
Cultura (MinC), o programa tem objetivos ainda mais ousados: alcançar,
nos próximos anos, o patamar de 18,8 milhões de trabalhadores e R$ 11,3
bilhões em investimentos (leia texto nesta página).
Para aprovar a novidade no Senado, Marta Suplicy, à frente da pasta
desde setembro, valeu-se de seu capital político, com o qual procura
ainda destravar o moroso trâmite das reformulações da Lei Federal de
Incentivo à Cultura (conhecida como Rouanet) e da legislação autoral.
A ministra começa a desenhar também uma reformulação que pode abalar as
estruturas da Agência Nacional de Cinema (Ancine). "Eu me dei conta de
que é preciso maior agilidade, menos burocracia e uma reforma
estrutural", diz. As mudanças não devem atingir o presidente da agência,
Manoel Rangel, cujo mandato termina em maio.
Com cinco meses de ministério, Marta reconhece a fase ainda de
aprendizado, diretamente proporcional ao entusiasmo com que enumera
desafios e planos: criação de editais para índios e pessoas com
deficiência. Lançar candidatura no próximo ano, diz, está fora de
cogitação. A seguir, trechos da entrevista concedida no Hotel Windsor,
na Barra da Tijuca.
Valor: Como convencer empresários e trabalhadores a ingressar no programa Vale-Cultura, que depende de adesão voluntária?
Marta Suplicy: O desafio será o empresariado e fazer com que as
pessoas de baixa renda ampliem seu leque para uma vasta programação.
Faremos forte campanha de publicidade, a partir de junho ou julho, para
mostrar as possibilidades para essas pessoas que nunca entraram numa
livraria. O foco será as classes C, D e E, alcançando 69 milhões de
brasileiros. Tentaremos chegar, neste ano, a R$ 300 milhões em
investimentos, atendendo a 1 milhão de trabalhadores por mês. No futuro,
com a meta de 18,8 milhões de trabalhadores, teremos R$ 11,3 bilhões
injetados na cadeia criativa.
Valor: Como ocorre com a Lei Rouanet, somente empresas com lucro real
poderão obter renúncia para utilizar o Vale-Cultura. Seus efeitos não
ficarão, mais uma vez, restritos à região Sudeste?
Marta: Há dois nichos: as metrópoles e as cidades pequenas, onde a
oferta é reduzida. Nordeste é um desafio, mas principalmente Norte, onde
a existência de empresas capazes de ingressar no programa é
infinitamente menor. Para variar, vai ter foco no Sudeste e carência lá
em cima. Em algumas cidades não adianta chegar porque não tem o que
consumir, não há livraria, cinema... Os dados do IBGE de 2008 são
fortes: apenas 9,1% dos municípios têm sala de cinema, 92% dos
brasileiros nunca visitou museu. O desafio é gigantesco, mas o impacto é
fantástico, porque atuaremos, pela primeira vez, orientados pela
demanda do consumidor.
Valor: A senhora acredita que o Vale-Cultura poderá realmente
modificar esse quadro retratado por esses e outros dados expressivamente
negativos do IBGE?
Marta: Não acho que seja da noite para o dia, mas paulatino. No
entanto, percebo que a população tem sede de conhecimento e nível de
informação que não dispunha antes. Conversei com prefeitos de todo o
Brasil, que recebemos em Brasília. Eles precisam ficar atentos, porque
se não tiverem oferta perderão para a cidade vizinha. Invistam na
produção cultural de vocês, verifiquem como abrir uma livraria. Vou
repetir esses encontros com federações de indústrias, associações
comerciais e prefeitos, para mobilizar.
Valor: Como preparar-se para essa demanda?
Marta: Não temos a menor ideia do que o povo quer, o que é
instigante. Na exposição gratuita dos pintores impressionistas, houve
filas no Rio e em São Paulo. Outro dia a porteira do ministério me disse
que queria o Vale-Cultura. Perguntei: para ver o quê? "Teatro de rico,
"Raimunda, Raimunda", com Regina Duarte, custava R$ 70 e perdi", ela
respondeu. Era o sonho dela. Qual é o sonho desses brasileiros? Será que
terão fome de cultura? Não sei. É fascinante, e teremos surpresas.
Valor: Boa parte dos investimentos da pasta é feita via renúncia
fiscal, cuja escolha recai sobre o empresariado. Edital recente do Fundo
Nacional de Cultura, desenhado para iniciativas sem vocação comercial,
investirá apenas R$ 9,7 milhões. Qual a opinião da ministra sobre esse
desequilíbrio?
Marta: Não é assim que se faz política de Estado. Isso tem que
acabar mudando. A existência da Rouanet é positiva, porque são mais
recursos para a cultura [R$ 1,3 bi em 2012]. Temos um orçamento pequeno
[a previsão é de R$ 2,8 bilhões em 2013, a ser votado pelo Congresso].
Cheguei em setembro e tive que me dedicar a muitas coisas, como a pauta
diversificada no legislativo, e a entender como funciona o ministério,
que possui mais de 3 mil pessoas.
"Qual é o sonho desses brasileiros? Será que terão fome de cultura? Não sei. É fascinante, e teremos surpresas"
Valor: A senhora executa uma agenda primordialmente de gestões anteriores. Qual será a marca própria da sua administração?
Marta: O nosso eixo é o da inclusão do cidadão na cultura, que é a
cara da presidenta. Estou solicitando a cada entidade coligada [Ancine,
Funarte, Ibram etc] que enumere prioridades nesse foco. Por que me
esforço tanto pelo Vale-Cultura? Porque será uma revolução, assim como
os CEUs [centro educacional unificado com enfoque esportivo e cultural,
marca de sua gestão como prefeita de São Paulo], distribuídos em 300
localidades pobres do país e dedicados à formação artística e ao
desenvolvimento de talentos. Tivemos a grata surpresa de deputados
solicitarem 38 emendas para levá-los aos seus Estados. Virou uma febre.
Valor: Abraçado como uma de suas prioridades, o impacto do
Procultura, que institui novas regras para o fomento e o incentivo à
cultura e substituirá a Lei Rouanet, é ainda incerto, segundo o setor. O
estudo do Ministério da Fazenda, que projeta maior captação, não traz
embasamento consistente, o empresariado poderá assustar-se com o fim da
isenção fiscal total que ocorrerá em algumas iniciativas e um buraco
jurídico, com o fim da Rouanet, poderá paralisar o setor. Qual a
avaliação da senhora?
Marta: O projeto prevê possibilidades de o produtor alcançar a
pontuação necessária para obter os 100% de renúncia para o empresário.
Basta abarcar, por exemplo, regiões desfavorecidas, o que será
interessante para a sociedade. Tenho feito trabalho de fôlego com o
deputado Pedro Eugênio [relator do projeto], e teremos uma transição
suave da Rouanet para o Procultura, com prazo de adaptação. Do
contrário, seria um desastre.
Valor: Qual o princípio que embasa a criação de editais para
afrodescendentes, entre suas primeiras iniciativas, considerados
discriminatórios para muitos? Seria uma reparação histórica?
Marta: Se fosse apenas uma reparação teórica, teria dúvidas.
Trata-se de um dado de realidade: a pessoa negra não tem as mesmas
possibilidades. Isso ficou evidente quando votamos, no Senado, a lei de
cotas raciais nas universidades, e todos os senadores e auxiliares eram
brancos. O único negro na sala era o senhor que servia café. Ficou
gritante, e o projeto passou. Se for mulher, é pior ainda... Sempre fui
preocupada com essas coisas, com as minorias, os gays... estou fazendo
tudo o que é possível. Teremos ainda edital para índio, para
deficientes, tudo o que der. Mas, olha, não há nenhum projeto para gay,
pelo menos não pensei em nada até agora [risos].
Valor:A respeito de outro projeto em discussão, a reforma da lei dos
direitos autorais, a senhora está convencida de sua necessidade e da
criação de um órgão que fiscalizará o Ecad (Escritório de Arrecadação e
Distribuição)?
Marta: Sim, mas também acho interessantes estudos que possibilitarão
acompanhamento on-line. Vai ajudar muito ao Ecad tornar-se mais
transparente, que ele diz que é, mas não é. Trata-se de um órgão
importante, necessário, porém sem transparência. Como ministério, temos a
responsabilidade de garantir o pagamento a todos os músicos, com toda a
lisura.
Valor:O ministério, a pedido da presidente Dilma, promoverá ações nos
grandes eventos esportivos, e a secretária-executiva Jeanine Pires é
ex-presidente da Embratur. Não corre-se o risco de perder-se foco e
recursos que caberiam ao próprio setor da cultura?
Marta: O problema da Copa não é a cultura. O problema da Copa é ter
um time bom para ganhar. Vamos fazer a nossa parte. E não vamos gastar
um tostão. A Rede Globo ajudará nos grandes eventos com cantores mais
conhecidos. E s vamos fazer os "flash mobs" [ações públicas coletivas],
que foram um dos maiores êxitos na Olimpíada de Londres, onde estive
para saber como foi. E o voluntariado está sob a égide do Ministério do
Esporte, pois temos um recurso muito pequeno para Copa.
"O desafio é gigantesco, mas o impacto é fantástico. Atuaremos, pela primeira vez, orientados pela demanda do consumidor"
Valor: Quanto?
Marta: Fiquei surpresa quando vi que era zero. Vou ter que tirar do
Fundo Nacional de Cultura. Por isso que a nossa contribuição será nesses
moldes.
Valor: Em maio, termina o mandato de Manoel Rangel na presidência da
Ancine, que já declarou a sua saída. Qual a política esperada do próximo
a ocupar o posto, a ser indicado pela ministra?
Marta: Manoel Rangel é um excelente presidente da Ancine, que não é
regida pelas mesmas regras de outras agências. Portanto ele não tem que
sair. Está em aberto.
Valor: Mas ele afirmou que deixará o órgão.
Marta: Foi muito elegante de sua parte. Mas isso precisa ser
conversado. Manoel tem importância grande neste momento porque, com a
aprovação da lei da TV por assinatura [que estabelece cotas de conteúdo
nacional na televisão paga], a Ancine passou a receber R$ R$ 700 milhões
por ano. Uma instituição que era voltada para o mercado de filmes agora
abarca todo o audiovisual. Dada à quantia e às pernas que a Ancine
possui hoje, temos de pensar em um novo modelo. Estou trabalhando nisso.
Eu me dei conta de que é preciso maior agilidade, menos burocracia e
uma reforma estrutural.
Valor: Já que considera tímido o orçamento da pasta, os recursos destinados à Ancine não seriam desproporcionais?
Marta: Ao observarmos que, dos R$ 2,2 bilhões do orçamento de 2012,
R$ 700 milhões foram para a agência, percebemos a importância que a
presidenta está dando ao cinema nacional. Se estivesse na pasta na
época, teria considerado a decisão absolutamente correta. Temos os
talentos, 200 milhões de habitantes e o Vale-Cultura chegando. Está
sendo alinhavado todo um processo de deslanche. Um país que não possui
um cinema que o represente não tem a cidadania que ainda precisamos
buscar. Hoje, um dos instrumentos mais importantes de uma nação é o seu
"soft power" [diferencial cultural que se impõe naturalmente]. Qual é o
nosso? Temos futebol, Carnaval, uma cultura de festa, mas se a gente for
pensar no papel de Hollywood para os Estados Unidos, ou dos cinemas
italiano e francês, temos a dimensão de que são quase tão fortes quanto
monumentos.
Valor: Pode-se esperar mudanças na Biblioteca Nacional, cujo prédio
continua em estado precário, e a transferência da política do livro para
Brasília?
Marta: As obras estão começando, já que o recurso foi finalmente
descontingenciado. Estou estudando a questão da política de leitura,
acho que faz mais sentido a separação, mas não está definido. Veja, o
número de coisas que temos de cuidar nesse ministério... e olha que sou
rápida... Tenho dois anos para conseguir esses avanços.
Valor: Mas a senhora passou o Carnaval encontrando-se com aliados da
base. A política não a chamará de volta nas eleições de 2014?
Marta: Nem pensar. Estou gostando muito da função, sinto que estou
sendo uma boa ministra. Mas nem comecei a entender tudo que é preciso.
Na hora que tomar as rédeas, teremos um desempenho muito bom. Não posso
pensar em ser candidata, acabei de entrar. Sou senadora, estou na
política e não tenho preocupações eleitorais. Até 2018 sou senadora e
estarei voltada para a cultura do país e em deixar uma marca para o
governo da presidenta.
Por Valor Econômico