São Paulo – Perto de completar 68 anos, o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva demonstra ceticismo com a possibilidade de que as
propostas de reforma política em tramitação no Congresso apresentem
mudanças significativas. Articulador político conhecido pela habilidade
entre apoiadores e opositores, o petista não vê chance de mudança
significativa nas regras do jogo pelos detentores dos atuais mandatos.
“Achar que os atuais deputados vão fazer uma reforma política mudando
o status quo é muito difícil. Pode melhorar um pouco”, diz, horas
depois de participar de uma conversa com o presidente do PT, Rui Falcão,
e com o deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), que comanda o grupo da
Câmara responsável por debater alterações nas regras. Entre os
deputados, parece improvável emplacar um debate sobre financiamento
público de campanha. Entre os senadores, a proposta encabeçada por
Romero Jucá (PMDB-RR), ex-líder da base aliada, quer mexer na pintura de
muros e no tempo de campanha, mas não no formato do sistema atual.
Em entrevista à
RBA, à
TVT e ao jornal
ABCD Maior,
Lula voltou a defender que se convoque uma constituinte para tratar
exclusivamente do tema. A proposta chegou a ser apresentada por Dilma
Rousseff após as manifestações de junho, mas foi rapidamente deixada de
lado pelo Congresso e pelo PMDB, que engavetaram também a ideia da
presidenta de realizar um plebiscito sobre a reforma política. “Por que o
empresariado brasileiro não está na rua fazendo campanha para que seja
pública e parar de dar dinheiro? Oras, é porque a eles interessa cada um
construir a sua bancada”, argumenta, ao analisar o cenário formado após
as manifestações de junho.
Outra das medidas propostas por Dilma enfrenta resistência, mas
parece avançar. Na visão de Lula, o Mais Médicos não resolve o problema
da saúde no Brasil, mas é um “gol” da presidenta e do ministro da Saúde,
Alexandre Padilha, porque começa a dar atenção básica a quem antes não
tinha direito a isso.
O ex-presidente considera, porém, que a questão só se resolverá com
mais recursos, e recorda que a oposição decidiu aprovar, em 2007, o fim
da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF). “Foi
um ato de insanidade dos tucanos em relação a meu governo, fizeram isso
achando que iam me prejudicar”, diz, na primeira entrevista extensa que
dá após deixar a Presidência da República.
Confira a seguir o primeiro trecho da conversa, realizada
ontem/hoje (24) no Instituto Lula, no Ipiranga, na zona sul de São Paulo.
Qual o impacto das manifestações de junho na vida do país e o que elas mudam na vida dos governantes?
Eu acredito que o impacto de tudo que aconteceu em
junho de 2013 deve servir como uma grande lição para a sociedade
brasileira e, sobretudo, para os governantes brasileiros. Costumávamos
afirmar que o povo precisa reivindicar sempre. Certamente, muita gente
de partidos políticos, sindicatos e movimentos organizados da sociedade
civil foi pega de surpresa, porque foi um movimento que se deu à margem
daquilo que nós conhecíamos como tradicional forma de organização. Eu me
lembro que não aconteceu nada no Brasil nos últimos 40 anos que a gente
não estivesse à frente. Seja o movimento sindical, sejam os partidos de
esquerda, seja a UNE, sejam os sem-terra...
O que eu acho importante? Aquilo não foi um movimento
contra o governo, não foi um movimento em que as pessoas queriam
derrubar o governo, mas foi um movimento em que as pessoas diziam “nós
queremos mais”. Nós queremos mais educação, nós queremos mais saúde, nós
queremos mais transporte, nós queremos mais qualidade de vida. Aí eu
lembro de um discurso do Fernando Haddad durante a campanha que ele
falava você está lembrado que na sua casa, da porta para dentro,
melhorou muita coisa, mas da porta para fora piorou ou ficou como está. E
era verdade, porque o cara tinha comprado uma máquina de lavar roupa,
uma geladeira, um televisor, mas a cidade não foi cuidada adequadamente.
Ou seja, você não fez as tarefas para cuidar do transporte
adequadamente, não fez o saneamento básico adequado, não tornou a
periferia boa para se morar.
A nossa presidenta teve a sabedoria de dar uma resposta muito
imediata, colocando a reforma política como uma coisa fundamental para
que a gente possa mudar a situação do Brasil, depois da questão da saúde
com o Mais Médicos, depois da aprovação de 75% dos royalties para a
educação... Ou seja, foram medidas tomadas pela nossa presidenta que
mostraram que o governo está num processo de evolução para tentar
encontrar soluções. Eu acho que agora ninguém pode mais dizer que o
problema do transporte é só do prefeito. É do prefeito, do governador,
do governo federal. Os problemas da saúde e da segurança não são mais do
prefeito, passam a ser dos três juntos.
O que a gente precisa neste instante é saber que mudou a sociedade
brasileira. Ela está mais exigente, ela tem mais informações do que
tinha antes. Você imagina, nós saímos de um país que tinha, em 2007, 48
milhões de pessoas que viajavam de avião. Hoje nós temos 113 milhões de
pessoas. Essa gente quer se queixar do aeroporto agora, quer se queixar
do preço da passagem, quer se queixar da qualidade do serviço no avião.
Antigamente você não tinha isso.
Eu acho que foi uma coisa de Deus fazer com que a sociedade se
manifestasse e dissesse “olha, nós estamos vivos, nós reconhecemos que
muita coisa foi feita e nós queremos que seja feito mais”. Isso é bom
porque alertou os governantes. Ao invés de ficarmos lamentando, nós
temos que agradecer e começar a trabalhar para que nós façamos acontecer
as melhorias que a sociedade brasileira deseja e que todos nós sabíamos
que o povo queria porque está na pesquisa de opinião pública.
Que bom que o povo resolveu dizer “estou aqui”. A única coisa grave
do movimento é a manipulação para a tentativa de negar a política.
Tenho dito publicamente que toda vez, em qualquer lugar histórico, em
qualquer lugar do mundo que se negou a política, o que veio depois é
pior. Portanto, se você quer mudar, mude através da política. Participe,
entre num partido, crie um partido, faça o que você quiser. Aqui no
Brasil o que teve foi o regime militar de 1964. No Chile foi Pinochet,
na Argentina foi ditadura. Não queremos isso. Queremos democracia
exercida em sua plenitude. E a sociedade quer isso. A sociedade quer
debater política, então vamos debater sem medo de debater qualquer
assunto. Sou daqueles que acham que não tem tema proibido.
Em relação às manifestações de junho, imaginava-se que elas
dariam força para aprovação da reforma política no Congresso, e também
que em 2011 a base aliada maior de Dilma daria mais condições para isso.
Por que não avança?
Não é fácil. As pessoas que foram para as ruas não vão
votar no Congresso Nacional. É importante lembrar que fizemos a campanha
das Diretas, que possivelmente foi um dos maiores movimentos cívicos
desse país, meses em que fomos à rua com todos os partidos políticos,
com movimento sindical, centenas e centenas de manifestações pelo Brasil
inteiro, toda a sociedade querendo, e quando chegou no Congresso não
tínhamos número para aprovar e não aprovamos.
Tenho dito que só teremos uma reforma política plena o dia em
que tivermos uma constituinte própria para fazer uma reforma política.
Achar que os atuais deputados vão fazer uma reforma política mudando o
status quo é muito difícil. Pode melhorar um pouco.
Acredito que é possível discutirmos uma mudança na votação,
votar em lista, financiamento de campanha. Há um equívoco de fazer a
sociedade compreender que o financiamento público vai tirar o dinheiro
da União. A forma mais eficaz, honesta e barata de se fazer uma campanha
política é você saber que cada voto vale um centavo, R$ 1 real, R$ 10
reais e que cada partido vai ter tanto, e que cada partido vai fazer
aquilo e se alguém pegar dinheiro privado tem de ser considerado crime
inafiançável, para que as pessoas não fiquem subordinadas aos
empresários.
Por que os empresários não estão defendendo o financiamento
público? É muito interessante que algumas pessoas, que se acham as mais
honestas do planeta, acham que o financiamento público é corrupção e vai
gastar dinheiro público. Por que o empresariado brasileiro não está na
rua fazendo campanha para que seja pública e parar de dar dinheiro?
Oras, é porque a eles interessa cada um construir a sua bancada. Os
bancos têm bancada no Congresso Nacional, têm influência, porque cada um
tem a lista de quem financia. Quem tiver dúvida disso, saia candidato
para ver o que acontece, para ver como você se elege no Brasil. Quando
colocamos financiamento publico é porque a gente acredita que pode
melhorar.
Acredito que (para 2014) a gente vai conseguir
fazer uma reforma política muito capenga. Temos que levar em conta que
há interesses partidários. Tem partidos para os quais está bom assim. O
cara tem mandato e quer preservar o seu mandato.
Na minha opinião a reforma política é a melhor
possibilidade para se mudar a lógica da política no Brasil. E ter em
conta que não é só para combater a corrupção, mas para facilitar as
coalizões que são conseguidas, porque quando você ganha uma eleição com
um partido aliado a outro tem que ter coalizão na hora para montar o
governo.
Aqui no Brasil se acha um absurdo que um partido ganha eleição e
dê cargo a outro, mas no mundo inteiro é assim. A Angela Merkli acabou
de ser eleita primeira-ministra da Alemanha, com a maior votação dos
últimos anos, vai ter que fazer uma coalizão com algum partido, vai ter
que dar ministério para algum partido senão não forma maioria.
A reforma política pode ajudar nesse processo, mas acho que será muito frágil. Sobretudo no
ano de eleições. Nada, estou avisando com antecedência, nada, mudará
para as próximas eleições. As pessoas podem querer fazer as coisas para
2018, 2020, mas para essa eu acho que não vai haver mudança.
O
Mais Médicos é um programa apoiado por 70% da população. No entanto, há
uma resistência de determinados setores da sociedade. Há oportunismo
nisso?
As entidades que representam os médicos no Brasil nunca
reconheceram que no Brasil faltava médico. Mais recentemente nós temos
uma gama de denúncias de prefeitos espalhados pelo interior do país que
querem contratar algumas especialidades que não existem. Padilha tem
razão com o que ele fala: não se está buscando médico fora para
substituir o médico brasileiro; se está buscando médico fora para
trabalhar onde não tem médico.
E o Padilha sabe que o Mais Médicos não vai resolver o problema
da saúde. O Mais Médicos vai dar oportunidade ao cidadão que não tem
acesso a nenhum médico, a ter acesso ao primeiro médico e tratamento. E
quando esse cidadão tiver acesso ao médico, ele vai querer mais saúde,
porque ele vai ter informações: vão pedir pra mulher fazer mamografia,
se é um homem vai ter que fazer exame de câncer não sei das quantas.
Então, todas as vezes vai precisar formar mais gente.
É um trabalho bom. Por que é bom? Porque, quando
em 2007 derrubaram a CPMF, que foi um ato de insanidade dos tucanos em
relação a meu governo, fizeram isso achando que iam me prejudicar. A
CPMF era 0,38% que se descontava em cada cheque que você passava. E não
fizeram isso por conta da quantia, fizeram isso porque a CPMF permitia
que a gente pudesse acompanhar e evitar a sonegação nesse país. Era por
isso que eram contra a CPMF. Eles tiraram uma bagatela de R$ 40 bilhões
por ano a partir de 2007.
Soma isso em quatro ou sete anos e vê a quantidade de dinheiro que
tiraram da saúde, achando que iam prejudicar o Lula. Qual era a ideia?
Vamos prejudicar o Lula. Vamos quebrar a cara dele, ele não vai se
eleger. E caíram do cavalo, porque terminei meu mandato com 87% de bom e
ótimo, 3% de ruim e péssimo e 10% de regular. Pois bem, quem eles
prejudicaram? O povo. E alguns estão prejudicados porque viraram
governador, e agora estão sabendo a quantidade de dinheiro que falta pra
eles, ou viraram prefeitos.
Então, foi um gesto de insanidade. Nós temos que colocar na sociedade
brasileira a seguinte ideia: você não vai conseguir fazer com que as
camadas mais pobres da população tenha acesso a uma boa qualidade de
saúde e à média ou alta complexidade sem dinheiro.
Se nós quisermos dar ao povo pobre o direito de ter acesso às mesmas
máquinas que eu tenho, por conta de um plano médico, e que os ricos
deste país têm por conta de um plano médico, tem que ter consciência de
que tem que ter dinheiro. Tem gente que diz “eu tenho saúde boa porque
pago do meu bolso”. Não é verdade. Aquilo que ele tira do bolso ele paga
o Imposto de Renda e quem paga o tratamento dele é o Estado brasileiro.
Essa é a verdade nua e crua. Todas as máquinas que eu passo quando faço
exame são pagas pelo Estado, que me restitui na declaração do Imposto
de Renda.
Temos que ter consciência de que temos que melhorar isso. A Dilma tem
consciência disso, o Padilha tem consciência e é preciso que a gente
discuta com a sociedade. Porque achar que a gente pode elevar a um
padrão de ter acesso de alta complexidade as pessoas mais pobres sem
dinheiro é vender ilusão. E achamos que o rico tem que pagar pela saúde
do povo mais pobre. Era por isso que tínhamos apresentado um programa
chamado Mais Saúde em que a gente iria utilizar todo o dinheiro da CPMF
para cuidar da saúde. Agora vai ter um dinheiro do pré-sal e espero que
num futuro bem próximo a gente possa fazer com que as pessoas tenham
acesso à alta complexidade.
O Brasil precisa acabar com a mania de dizer que o SUS não funciona. O
problema é que universaliza a saúde, coloca muita gente, a qualidade
diminui. Se atendesse só 30% melhoraria a qualidade, se atendesse só 20%
ela seria melhor, se atendesse só 10% ela seria extraordinária. Mas na
hora em que tem que ter um programa para todo mundo precisa de mais
recurso. É isso que temos de ter em conta. Dilma e Padilha marcaram um
gol com o Mais Médicos. Abriram um debate muito importante com a
sociedade para as pessoas começarem a enxergar.
Fonte: Rede Brasil Atual