São graves os problemas que envolvem os paulistas. Fraudes nos
hospitais, transtornos no Metrô, preços dos pedágios e transbordamentos
do Tietê encabeçam a lista de 2011. São temas recorrentes nas conversas
de rua, na polícia, no Ministério Público, nos tribunais. Só não
chegaram ainda à Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), onde estão
devidamente instalados os 94 representantes eleitos e pontualmente
remunerados pelos paulistas. A causa não é o recesso iniciado nesta
segunda-feira, cem dias após a posse dos novos eleitos. Então, o que
impede o legislativo paulista de se envolver nos temas da maioria dos
cidadãos?
A política no sentido menos nobre da palavra, admitem muitos
deputados. Por causa dela, em vez de fiscalizar e propor mudanças, a
Alesp funciona a cada dia mais como um anexo do Palácio dos
Bandeirantes, sede do governo de São Paulo. É normal que os interesses
dos governos que compõem maioria predominem nos legislativos. No Brasil,
o fisiologismo nas bancadas é corriqueiro. Mas no caso de São Paulo,
onde a oposição detém 30% das cadeiras, o que se vê é uma série de
mecanismos que transformam a Alesp em uma espécie de chancelaria
governamental. A oposição afirma que tenta, mas não consegue romper a
blindagem em torno de temas considerados críticos pelo Palácio dos
Bandeirantes.
Vitorioso nas cinco últimas eleições estaduais, o PSDB é apontado
pela oposição como o articulador de mecanismos que dificultam a
independência legislativa. No atual governo, de Geraldo Alckmin, a
situação teria se acentuado, por causa de uma crise interna na própria
bancada, o que as lideranças tucanas negam. O presidente da Alesp,
Barros Munhoz, afirma que a Casa só não mergulhou nos problemas citados
porque outras instituições, como o Tribunal de Contas do Estado e a
polícia, fazem esse trabalho. Ele avalia ainda que o esvaziamento das
funções legislativas se dá em todo o País, desde a Constituição de 1988.
“Essas críticas são da oposição, que é minoria aqui. Nas democracias, o
que vale é a maioria”.
Mas não se trata apenas da oposição. A falta de envolvimento da Alesp
tem incomodado a própria base do governo, pressionada por parte de seu
eleitorado. Sob condição de não ter os nomes divulgados, deputados da
base de apoio ao governo reconhecem e também reclamam: “O governo
apequena a Assembleia. Aqui o debate é proibido. Exercer o poder
fiscalizatório também é absolutamente vedado. Eu acho eu isso é ruim
para todo mundo, as nossas bases não gostam disso e fica até feio para o
governo”, resume um deles.
Para se ter uma idéia dos mecanismos, só têm sido aprovados os
projetos de lei que o Colégio de Líderes consegue chancelar antes, junto
ao governo. As bancadas elegem suas prioridades, os líderes levam ao
Colégio e de lá é definida uma consulta aos órgãos do executivo
envolvidos no tema. “Para evitar que o governo tenha que se desgastar
com um veto, o projeto de lei nem entra em cena. O líder do governo leva
o projeto para a área do governo envolvida e retorna dizendo se há ou
não acordo, as mudanças necessárias etc. Assim, quem legisla de fato é o
executivo. Somos meros despachantes”, reclama o líder do PT, Enio
Tatto.
“Eu também não concordo com esse mecanismo. Só que o que acontecia
antes era uma chuva de vetos. Então temos um acordo para consultar o
governo antes”, admite o líder do PSDB, Orlando Morando. “Não há uma
subordinação ao governo. O que fazemos é uma tentativa de consenso”,
reage o líder do governo, Samuel Moreira (PSDB). Para ele, o fato é que o
regime presidencialista, aplicado no Brasil, “estabelece uma liderança
natural do executivo”.
Fiscalizar é a função legislativa mais esquecida em São Paulo. Há
quase duas décadas as administrações tucanas não enfrentam uma CPI. As
comissões de inquéritos aprovadas na Casa envolvem temas tão
irrelevantes que parte delas foi barrada pelo Tribunal de Justiça neste
ano. Mas não é apenas por compor a maioria que os governos barram as
investigações. O episódio deste ano é auto-explicativo acerca dos
mecanismos. Para evitar que a oposição protocolasse pedidos de CPIs,
como sobre os pedágios e as enchentes no Tietê, a base montou uma
estratégia primária: registrou pedidos de CPIs infundados e desconexos
com o governo, como a CPI da Dentadura, que investigaria os serviços de
implantes dentários, ou a CPI dos Cachaceiros, que apuraria o consumo
abusivo de álcool pelos cidadãos paulistas, para superlotar o protocolo e
barrar as investigações que envolviam o governo.
As Comissões de Inquérito da Assembleia têm de funcionar em ordem
cronológica, de acordo com a chegada do pedido ao protocolo. Em 16 de
março, um dia após a posse, o PT tentou registrar, antes do PSDB, o
pedido para a CPI dos Pedágios. Barros Munhoz entendeu que uma assessora
do PSDB havia chegado antes. Após um impasse que durou mais de dez
horas, a presidência da Assembleia deu à funcionária tucana o primeiro
lugar na fila. E como ela tinha 11 pedidos de CPIs para protocolar,
fechou a possibilidade de a oposição cadastrar pedidos nos período
legislativo. Ao anunciar a decisão, na época Munhoz reconheceu que falta
detalhar os critérios para o protocolo. Segundo avalia atualmente,
“aqui não se inibe CPIs, como o governo do PT faz na Câmara e no
Senado”.
O governo estadual também tem alterado sua estrutura sem consultar o
Legislativo. “É tanta submissão e a hegemonia é tão grande, que se
esqueceram da lei. Não poderiam, por exemplo, mudar a Corregedoria da
Polícia sem consultar a Assembleia, isso é inconsticional”, reclama o
deputado Edinho Silva, presidente do PT paulista. Para ele, os métodos
desfavorecem o próprio governo, além de provocar o esvaziamento da
agenda, “pois quando a Assembleia deixa de dialogar com a sociedade, ela
fica à margem, o que é ruim para o Legislativo e também para o
executivo”. Segundo avalia, se o governo abrisse os debates, poderia até
dividir desgastes com o Legislativo ou obter blindagens políticas para
problemas pontuais. Se não barrase CPIs, poderia agir para modificar
modelos, como no caso dos pedágios. Edinho exemplifica: “No caso das
fraudes médicas, por exemplo, todos sabemos que não se tratam de fraudes
do governo, mas problemas de um modelo que precisa ser modificado. Não é
tudo que é contraponto para a oposição. Mas aqui esse debate não
acontece”.
Não há sinal de mudanças na Alesp. Ao contrário. Está em curso uma
crise interna, que tem acirrado ainda mais o centralismo. Segundo
admitem lideranças tucanas, Alckmin é ainda mais centralizador que o
antecessor, José Serra. “Digamos que a diferença entre Alckmin e Serra é
que temos uma continuidade sem continuísmo”, define Morando, antes de
concluir: “Na verdade Alckmin é um pouco mais centralizador que Serra”.
Na realidade, Alckmin montou e governo e articulou a base aliada em
plena sangria política da feroz disputa com Serra. Para complicar, seus
escolhidos para fazer a articulação política na Casa receberam uma
fatura de 90 milhões de reais em emendas de 2010 que ainda não foram
pagas. E a conta envolve ao menos 70% dos deputados da base, que foram
reeleitos para este mandato. Essa é uma das justificativas para o estado
atual de pequenas fissuras e descompassos no batuque tucano da
Assembleia. “Não é esse o problema. O fato é que o próprio PSDB está
dividido dentro da Casa e com isso a base fica sem interlocução com o
governo”, afirma um aliado.
Não há, porém, sinal algum de rebelião na base. Apenas pressões
sutis, como falta de quorum, que têm permitido manobras da oposição para
viabilizar emendas em projetos. Afinal, Alckmin não fez economia para
manter a hegemonia do PSDB na Assembleia, Para se ter uma idéia, quase
todas bancadas da base aliada hoje têm secretarias ou setores
importantes no governo Alckmin: PPS, PSB, PP, PMDB e PV, além do DEM,
PTB que já vêm contemplados desde Serra. Os outros aliados, como PR, PDT
e PRB também têm mais cargos que na gestão anterior, segundo uma
liderança tucana.
“Não reclamamos mais de cargos, mas o fato é que o governo tem
dialogado pouco e pressionado muito para barrarmos a oposição, só por
política. Mas não está pegando bem ficar tão longe das discussões da
sociedade, isso pode nos custar muito caro, porque a política está
mudando, as pessoas estão cobrando mais”, explicou um deputado da base.
Talvez, para os paulistas, o custo também esteja alto, inclusive do
ponto de vista financeiro. Para este ano, o Orçamento chega a 680
milhões de reais. Cada deputado consome por mês, em média, 139 mil reais
(20 mil reais de salário, 24 mil reais de verbas extras para as
despesas e 95 mil reais para custear os assessores).
Fonte: revista Carta Capital / PTALESP